Causas de modificação e anulação das decisões do Júri: breves comentários à luz dos princípios constitucionais aplicáveis

Tribunal do Júri é o órgão jurisdicional competente para conhecer, processar e julgar os crimes dolosos contra a vida (e as infrações penais conexas), conforme dicção expressa do artigo 5º, XXXVIII, “d”, da Constituição da República.

Registre-se que a mencionada categoria delitiva é constituída pelos tipos penais descritos no artigo 74, §1º, do Código de Processo Penal, a saber: (i) homicídio; (ii) auxílio, induzimento ou instigação ao suicídio; (iii) infanticídio; e (iv) aborto - em todas as suas variações típico-legais.

Também por imperativo constitucional, o Júri é regido por três princípios que o distinguem face aos demais procedimentos penais de primeiro grau, consistentes no (a): (i) plenitude de defesa; (ii) sigilo das votações; e (iii) soberania dos vereditos (art.5º, XXXVIII, alíneas “a”, “b” e “c”).

Feita essa breve introdução, interessa-nos abordar doravante as possíveis causas modificativas e anulatórias das decisões proferidas no âmbito do Júri – especialmente as de conteúdo condenatório - compatibilizando-as, por necessário, com os postulados acima destacados.

De plano, cumpre frisar que as hipóteses de impugnação (cabimento recursal) das sentenças emanadas do Tribunal do Júri são elencadas, em rol taxativo (fechado), no artigo 593, III, do CPP, razão para que a apelação em casos tais seja classificada como “recurso de fundamentação vinculada”.

A lição é consagrada no verbete de nº 713 da súmula de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de sorte que “a apelação da decisão do Júri é adstrita aos motivos invocados pelo apelante, quando da interposição, ou, ao menos, da apresentação tempestiva das razões que complementam o recurso” (HC 85.702/PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).

Vale dizer, se a irresignação não se socorrer de qualquer das circunstâncias previstas no arquétipo legal, o apelo deverá receber juízo negativo de admissibilidade – deixando de ser conhecido (por falta de cabimento) e, assim, de ter seu mérito apreciado pela instância revisora (órgão de 2º grau).

Essa disciplina restritiva decorre da já mencionada soberania dos vereditos, cuja melhor interpretação é no sentido de se prestigiarem, na maior medida possível, as deliberações do tribunal popular – o que implica, logicamente, em reduzir (sem eliminar) a margem para sua emenda ou nulificação.

Sobre o poder de reforma (alteração) do julgado, diz a doutrina: “Nestes casos, o Tribunal ad quem adstringir-se-á a reformar a aplicação do direito efetuada pelo juiz-presidente, não podendo modificar a decisão adotada pelos jurados, pois no que tange ao tribunal popular vigora o princípio da soberania dos vereditos.”(TÁVORA, Nestor. Código de Processo Penal comentado, 2019, p. 973).

Cuida-se dos casos em que a sentença contraria a lei ou a decisão dos jurados, bem como falha na aplicação da pena ou medida de segurança (art. 593, III, “b” e “c”, do CPP) – lembrando que tais atividades demandam conhecimento técnico específico e, portanto, são inscritas na chamada cláusula de reserva de jurisdição.

Nesse contexto, a instância recursal poderá alterar tão somente a parte dispositiva da decisão impugnada (quantificação da pena), adaptando-a à legislação em vigor e/ou à deliberação dos jurados, cujos soberanos termos haverão de ser integralmente resguardados.

A invalidação, por sua vez, resultará da constatação de nulidade posterior à decisão de pronúncia (art. 593, III, “a”, CPP) e acarretará novo veredito por outro Conselho de Sentença (corpo de jurados), isto é, sem que o órgão de segundo grau adentre a análise do mérito da causa para o fim de absolver ou condenar o acusado – competência essa de que não dispõe, como visto.

Como exemplos podemos mencionar, entre outras, as circunstâncias descritas nos arts.478 e 479 do CPP, versadas em argumentos de autoridade que possam influenciar indevidamente o ânimo dos jurados e, ainda, na apresentação de documentos até então sonegados à outra parte, em seu prejuízo.

Por fim, convém observar que a jurisprudência brasileira abriga - equivocadamente, em nosso sentir – a distinção entre invalidades absolutas (nulidades) e relativas (anulabilidades) em âmbito processual penal, consistindo as primeiras em matérias de ordem pública, cognoscíveis a qualquer tempo pelo próprio juiz, dispensando prova do prejuízo.

As nulidades relativas, noutro giro, seriam os vícios de menor gravidade que, como tais, devem ser arguidos somente pela parte interessada e no “momento processual” adequado, sob pena de preclusão. Não se contentam, porém, com a mera alegação do malefício, pois exigida sua efetiva comprovação.

Por vezes distorcendo o sentido e o alcance da soberania dos vereditos, nossos tribunais costumam classificar quase todas as irregularidades usualmente observadas no Júri como causas de nulidade relativa, reclamando, por conseguinte, a demonstração do prejuízo alegado, ainda que a própria lei não o faça.

De fato, a condicionante imposta esbarra em outro princípio constitucional específico do Júri – o do sigilo das votações (art. 5º, XXXVIII, “b”) –, porquanto impossível demonstrar o prejuízo quando ignorados os fundamentos determinantes da decisão – eis que aí impera o sistema da íntima convicção.

Por exemplo, se uma prova ilícita é apresentada nos debates em desfavor do réu e este vem a ser condenado, como certificar que tal fato não influenciou de qualquer modo o convencimento dos jurados, ainda que outros elementos de convicção tenham sido produzidos pela acusação? Como assegurar que o elemento eivado não foi a “bala de prata” da tese persecutória?

Assim, articulada tese anulatória não manifestamente infundada, melhor seria presumir o prejuízo em caso de veredito condenatório, solução mais consentânea à regra de tratamento derivada do estado de inocência (art. 5º, LVII, CRFB) e que, de resto, não conduziria diretamente à absolvição do acusado, submetido que seria a novo julgamento popular.