Decisão judicial que se pronuncia sobre obrigações de trato continuado não produz coisa julgada sobre a integralidade da relação jurídica, decide STJ

Vamos ao caso: empresa A firmou contrato de prestação de serviços continuados (relação de trato sucessivo) junto à empresa B. Passado algum tempo, a contratante (empresa A) tornou-se inadimplente, movendo ação de rescisão contratual (vara empresarial) em face da contratada (empresa B) sob o fundamento de que esta não teria cumprido suas prestações adequadamente. O pedido, contudo, foi julgado improcedente e a decisão transitou em julgado.

A empresa B, por sua vez (baseando-se no estado de inadimplência da contraparte), deflagrou ação de execução de título extrajudicial (vara cível) em face da empresa A, que juntou, em sede de embargos à execução, documento comprobatório de que a exequente não havia, até então, observado o procedimento adequado para prestação dos serviços contratados (compensação de créditos tributários). Com isso, os embargos foram acolhidos e a execução extinta.

O Superior Tribunal de Justiça, defronte a alegação de que a última decisão teria violado a coisa julgada material produzida na primeira, assentou que, em se tratando de obrigações detrato sucessivo (hipótese dos autos), a coisa julgada não alcança a totalidade da relação jurídica apresentada, mas somente a parcela submetida, até então, à apreciação jurisdicional. Como o vínculo negocial protrai-se, eventual pronunciamento judicial posterior recairia sobre causa de pedir e pedido distintos, devido às alterações fáticas e jurídicas operadas no tempo.

Vamos à lição de Antônio do Passo Cabral: "(...) Modificando-se os fatos que dão ensejo à relação jurídica de trato continuado (e o próprio direito) e que legitimam o pedido de uma tutela jurisdicional, tem-se a possibilidade de propositura de uma nova ação, com elementos distintos (nova causa de pedir enovo pedido), a chamada ação de revisão ou ação de modificação. A coisa julgada não pode impedir a rediscussão do tema por fatos supervenientes ao trânsito em julgado (a eficácia preclusiva só atinge aquilo que foi deduzido ou poderia ter sido deduzido pela parte à época da decisão).

(...) Ao deparar-se com a ação de revisão, o juiz estará julgando uma demanda diferente, pautada em nova causa de pedir (composta por fatos/direito novos) e em novo pedido. Com isso, gerará uma nova decisão e uma nova coisa julgada, sobre esta nova situação, que não desrespeitará, em nada, a coisa julgada formada para a situação anterior.

(...) A nova decisão, proferida em ação de revisão, não desconhece nem contraria a anterior. Trata-se de uma nova decisão, proferida para uma nova situação – cujos pressupostos e elementos constitutivos já variaram com o passar o tempo. Na verdade, a decisão proferida em tais situações contém em si variação da cláusula rebus sic stantibus, que permite sua adaptação ao estado de fato e ao direito supervenientes.” (CABRAL, Antonio do Passo e CRAMER, Ronaldo. (coord.) Comentários ao novo Código de Processo Civil - 2a ed. Rio de Janeiro: Forense,2016, p. 771).

Vide, a propósito, a redação do art. 505, I, do CPC/15: "Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I - se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença".

Assim, não se mostra contraditório o julgamento posterior que reconheceu a inexigibilidade e extinguiu a execução dos títulos vinculados ao contrato se, a despeito do juízo inicial de improcedência da rescisão, pois as obrigações vinham sendo atendidas, não se formou juízo final e de certeza quanto à inteireza da relação jurídica existente. Com efeito, novo pronunciamento, que leva em consideração alteração fática superveniente, não ofende a imutabilidade da decisão anterior, que, ao apreciar obrigações continuadas e ainda não finalizadas, traz consigo, implicitamente, uma cláusula rebus sic stantibus, que autoriza a adaptação de eventual novo provimento à nova realidade.

Processo: STJ, 3ª Turma. REsp 2.027.650/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 25/10/2022 (Informativo759)

Fonte: Dizer o Direito.