O fornecedor deve responder pela presença de "corpo estranho" nas bebidas e alimentos que comercializar?

Inaugurando a série especial de postagens sobre a semana do consumidor, trataremos da responsabilização civil dos fornecedores de produtos e serviços pela presença de insetos e outros "corpos estranhos" em bebidas e alimentos, tema que foi objeto de recente pacificação pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça.

Não se discute que os fabricantes, distribuidores e comerciantes de gêneros alimentícios estão obrigados a zelar pela incolumidade física e psíquica dos consumidores, o que pressupõe a observância de rigorosos parâmetros de controle de qualidade, segurança e riscos em todas as etapas da cadeia produtiva. Afinal, todos que ocupamos a posição de usuários de bens e serviços ostentamos os direitos básicos de "proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos" e de "efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos" (CDC, art. 6º, I e VI).

Vale acrescentar que "a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população", conforme o disposto no art. 2º, caput, da Lei Federal nº 11.346/2006.

Também de acordo com o referido diploma legal, a segurança alimentar e nutricional abrange "a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população" (art. 4º, IV).

Note-se ainda que a alimentação adequada foi incluída pela Emenda Constitucional nº 64/2010 no art. 6º da Lei Maior, passando a constar textualmente como direito social de todos os brasileiros.

Pois bem. Assegurada a dignidade normativa do bem jurídico em questão (integridade psicofísica dos consumidores), é preciso fundamentar o dever reparatório em face dos fornecedores que eventualmente violarem esse verdadeiro "direito humano à alimentação adequada" (DHAA), mesmo que de forma não culposa.

Nesse sentido, a Lei de Consumo estabelece que os fornecedores de produtos e serviços respondem, objetivamente, pela "reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos" (art. 12, caput), sendo certo que o produto defeituoso deve ser concebido como aquele que "não oferece a segurança que dele legitimamente se espera" (§1º).

Em reforço, cabe afirmar que a responsabilidade civil em casos tais decorre da teoria do risco-proveito, segundo a qual o agente que aufere benefícios e vantagens (lucro) a partir da atividade desempenhada deve, de igual modo, responder por eventuais ônus e encargos provenientes dessa mesma atividade, numa lógica que se quer (e o logra) equitativa.

Acolhendo tal argumentação, a 2ª Seção do STJ decidiu, por maioria, que a mera presença de corpos estranhos em alimentos configura ato ilícito gerador de dano moral indenizável, independentemente da ingestão pelo consumidor, porquanto já suficiente para submeter a integridade física deste a risco concreto de lesão.

Trata-se de entendimento ancorado no paradigma de maximização da tutela da vítima contra riscos não permitidos (que dá a tônica da responsabilidade civil contemporânea), o que por vezes demanda a imputação do dever indenizatório em caráter inibitório, isto é, independentemente da verificação de um dano concreto já perpetrado contra qualquer bem jurídico normativamente prestigiado.

Equivale a dizer que determinados valores, por sua especial importância para o sistema jurídico, admitem atuação preventiva a bem de sua efetiva conservação, tornando dispensável a consumação de um evento lesivo para que o agente seja obrigado a responder pelo risco indevidamente gerado.

Como se vê, a salvaguarda da integridade física e psíquica dos consumidores contra riscos não autorizados já constitui, por si só, um bem jurídico merecedor de proteção pelo ordenamento jurídico pátrio, recebendo, por isso, juízo de censura a conduta que frustra essa "razoável expectativa de segurança" em relação aos produtos postos em circulação no mercado de trocas.

Desse modo, a efetiva ingestão do corpo estranho deve servir apenas para fins de quantificação de eventual verba compensatória, haja vista que esta se mede pela extensão do dano, consoante o disposto no art. 944 do Código Civil.

Processo de referência: STJ, 2ª Seção. REsp 1.899.304/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 04/10/2021

Obs: No referido julgado, o Min. Luis Felipe Salomão anotou, dissentindo da relatora: "[...] mostra-se equivocado o entendimento no sentido de que a 'imputação da responsabilidade do fornecedor por defeito do produto está correlacionada à frustração da razoável expectativa de segurança do consumidor, que possui interesse, legitimamente resguardado pelo ordenamento jurídico, de que os produtos colocados no mercado de consumo não apresentem periculosidade ou nocividade a ponto de causar danos às pessoas que são expostas aos mesmos', uma vez que o dano moral apenas se verifica com ataque concreto a um direito da personalidade, circunstância que não se verifica em casos como o dos autos"."[...] para reconhecer-se a ocorrência do dano moral imperativo a existência de um dano efetivo, uma lesão juridicamente relevante, não bastando a transgressão ao ordenamento em si mesmo. Desse modo, nas hipóteses em que o alegado dano consistir na ilicitude de uma conduta, sem que essa ilicitude represente, de fato, lesão a direito da personalidade, não se legitima a qualificação do dano moral. Ou seja, da ilegalidade em si não se pode inferir o dano moral, ainda que a situação seja considerada, em tese, abusiva".