É possível favorecer um filho em detrimento do outro na herança?

Conforme preconizado textualmente no art. 227, §6º, da Constituição Federal, "Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação", preceito reproduzido à risca pelo art. 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e pelo art. 1.596 do Código Civil brasileiro.

Trata-se do princípio da igualdade entre os filhos, cujos efeitos projetam-se nas esferas existencial e patrimonial da pessoa humana, inclusive no campo sucessório. À primeira vista, portanto, poder-se-ia dizer que o tratamento diferenciado entre os filhos no que concerne à percepção de herança seria absolutamente vedado à luz do paradigma (constitucional) em referência.

Não obstante a elogiável lógica que o orienta, tal raciocínio ignora duas regras fundamentais e complementares do direito das sucessões, a saber:

(i) a primeira delas deflui da conjugação entre os arts. 1.845 e 1.789 do Código Civil, segundo os quais os filhos, na condição de herdeiros necessários, fazem jus à chamada legítima, parcela correspondente à metade do acervo hereditário, ficando a outra metade suscetível de livre disposição em testamento, ressalvadas as restrições legais (arts. 1.801 e 1.802 do CC/02); (ii) a segunda dispõe que, na linha descendente, os filhos herdam por cabeça, isto é, repartem entre si o montante destinado à sua classe em quinhões idênticos (art. 1835).

Conclui-se, com efeito, que a verba sucessória vinculada - vale dizer, com destinação aprioristicamente especificada por lei - é dividida irmãmente entre os filhos, os quais perceberão fatias iguais do patrimônio transmitido, dando-se, neste particular, eficácia plena ao comando constitucional. Em uma palavra, significa que os descendentes da mesma classe recebem o mesmo tratamento diante das mesmas circunstâncias.

Do exposto também é intuitiva a constatação de que a parcela disponível da herança - aquela que exorbita os limites da legítima - pode ser objeto de livre ordenação em testamento, inclusive em favor de um dos filhos em detrimento do(s) outro(s), haja vista não existir qualquer vedação legal neste sentido.

Assim, por exemplo, se uma pessoa possui apenas dois filhos e tem um patrimônio de 100 mil reais a transmitir por herança, a partilha poderá se dar da seguinte maneira: (i) por força da legítima - estimada, na hipótese, em 50 mil reais -, cada filho herdará, necessariamente, 25 mil reais, tendo em vista a já mencionada regra de divisão por cabeça (50 mil divididos por 2); (ii) os outros 50 mil reais podem ser atribuídos, na íntegra, a apenas um dos filhos, desde que contemplado em testamento válido; (iii) ao final, um dos filhos perceberá 25 mil reais (legítima), e o outro ficará com 75 mil reais (25 mil da legítima + 50 mil do testamento), sem que com isso se anote qualquer irregularidade.

Tal solução, ao conferir margem para a disposição do próprio patrimônio sem descurar da reserva necessária à manutenção do núcleo de afeto do testador, parece harmonizar com louvável razoabilidade a exigência de tutela material da família (calcada no princípio da solidariedade) e o respeito à autonomia privada, dois princípios constitucionalmente prestigiados.