Execução antecipada da pena e Tribunal do Júri: breves considerações sobre o art. 492, I, "e", do CPP e a tese proposta no Tema 1068 do STF à luz da presunção de inocência

Está em curso no âmbito do Supremo Tribunal Federal o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.235.340 (Tema 1.068), cujo objeto consiste em decidir se o princípio da soberania dos vereditos (art. 5º, XXXVIII, “c”, da CRFB) autoriza a imediata execução da pena imposta pelo Tribunal do Júri.

A celeuma ganhou novos contornos a partir da alteração promovida pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) na redação do art. 492, I, “e”, segunda parte, do Código de Processo Penal, que passou a prever o imediato recolhimento do acusado ao cárcere em caso de condenação a pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão.

O Min. Luís Roberto Barroso, relator do referido recurso, apresentou a seguinte tese de repercussão geral, a ser apreciada pelo Plenário da Corte Excelsa: “A soberania dos veredictos do tribunal do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total de pena aplicada”.

Como se percebe, a tese proposta é ainda mais permissiva do que o texto legal, porquanto admite a execução imediata de qualquer condenação emanada do tribunal popular, ao passo que a norma em vigor condiciona tal possibilidade ao quantum de pena fixadaafigurando-se ambas as disposições, entretanto, equivocadas à luz da Carta de 1988.

Em seu voto, destacou o magistrado que o cumprimento instantâneo da sanção estaria respaldado no princípio constitucional da soberania dos vereditos, em razão do qual as instâncias recursais estariam impedidas de reapreciar fatos e provas, limitando-se, em caso de deferimento do pleito impugnativo, a submeter os réus a novo julgamento pelo tribunal popular (ou a retificar o cálculo errôneo da pena).

Sem qualquer pretensão de esgotara análise técnica do tema, ousamos divergir das premissas adotadas pelo eminente relator, uma vez que o postulado por ele suscitado não possui o condão de excepcionar ou mesmo mitigar o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII,CRFB), com o qual deve ser harmonizado.

Trata-se de consectário do princípio da unidade da constituição, segundo o qual incumbe ao intérprete “o dever de harmonizar as tensões e contradições existentes entre as normas da constituição decorrentes do pluralismo e do antagonismo de ideias subjacentes ao pacto fundador” (NOVELINO, Curso de direito constitucional, 2020, p. 165) – em função do que descaberia estabelecer uma hierarquia normativa entre seus dispositivos.

Significa, em outras palavras, que os dispositivos constitucionais possuem a mesma posição na escala normativa, sendo certo que a flexibilização do seu sentido ou alcance deve ser reservada aos eventuais conflitos observados casuisticamente, nos quais o aplicador do direito – normalmente sob o crivo da proporcionalidade – definirá qual deles prevalecerá in concreto.

Sucede que os valores constitucionais em apreço (soberania dos vereditos x presunção de inocência) em verdade não se encontram – ao contrário do que se afirma – em rota de colisão, sendo por isso inteiramente dispensável a adoção do método hermenêutico acima referido, senão vejamos.

A soberania dos vereditos consiste em prestigiar – na maior medida possível – a deliberação popular no âmbito do julgamento dos crimes dolosos contra a vida, reduzindo a margem para a sua cassação e/ou modificação.

Justamente por isso é que: (i) a lei estabelece um rol taxativo (fechado) de hipóteses para a interposição de recurso contra as sentenças proferidas no Júri, (ii) vedando a repetição de apelo lastreado em suposto erro de avaliação dos jurados quanto à prova dos autos (art. 593, §3º, CPP).

Do mesmo modo, (iii) se reconhecida uma causa de nulidade absoluta da decisão, o órgão de hierarquia superior poderá apenas cassar o veredito e submeter o réu a novo julgamento, sem usurpar a competência do tribunal popular para apreciar o meritum causae.

Essas são as (únicas) peculiaridades que dão substância ao postulado em exame, causando-nos espécie a interpretação ampliativa – ou seria criativa ? – que vozes respeitáveis da doutrina e dos tribunais nacionais vêm desenvolvendo para justificar (mais uma) injusta agressão ao estado de inocência e à tutela da liberdade humana.

Ora, a norma do art. 5º, LVII, da Constituição da República é categórica ao gizar que “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, status que concerne à decisão judicial “de que já não caiba recurso” (art.6º, §3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB).

Por sua vez, o art. 283 do CPP – cuja constitucionalidade foi recentemente declarada no âmbito das ADCs 43, 44 e 54 – preconiza com elogiável clareza: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado” – reproduzindo e complementando o disposto no inciso LXI do art. 5º da Lei Maior.

Poder-se-ia argumentar que, em razão do critério cronológico (lei posterior revoga lei anterior – art. 2º, §1º, LINDB), a Lei nº 13.964/2019 teria revogado implícita e parcialmente o art. 283 do CPP, com o que restaria viabilizada normativamente a execução provisória da pena no âmbito do Júri, nos termos do já mencionado art. 492, I, “e”, da lei penal adjetiva.

Nada obstante, a solução que nos afigura mais correta é declarar a inconstitucionalidade material dessa nova disposição legal, por frontal e insuperável violação ao comando inscrito no art. 5º, LVII, da Lex Mater, sob pena de se admitir a formação de culpa do acusado à margem de sentença condenatória definitiva (irrecorrível) – ainda que quantitativa e qualitativamente limitado o espectro de sua impugnação.

Não se cuida aqui de proclamar o descabimento peremptório da prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, mas de reconhecer que, em tal cenário, somente tem lugar a segregação em sede cautelar, hipótese que não necessariamente se perfaz em vista da condenação pelo Tribunal do Júri – ainda que elevada a pena aplicada.

É aberrantemente equivocada, com efeito, a associação proposta entre gravidade da sanção, soberania dos vereditos e imediata execução da pena, pois o texto constitucional nenhuma ressalva faz quanto à impossibilidade de reconhecimento da culpa – e consequente cumprimento da punição – antes do esgotamento da via recursal.

Goste-se ou não, deve o acusado recorrer em liberdade se ausentes os requisitos legais para a decretação de sua custódia cautelar - mesmo em face de pronunciamento condenatório pelo tribunal do povo – cuja soberania implica apenas em restringir – e não atalhar - o duplo grau de jurisdição.

Ademais, se o constituinte desejasse relativizar a presunção de inocência – admitindo a execução antecipada da pena – a bem de consagrar a soberania dos vereditos, tê-lo-ia feito de forma expressa, o que evidentemente não ocorreu. Impõe-se, nesse caso, o pleno acato à textualidade magna, mormente quando intentada solução contra homine (em desfavor da pessoa humana).

Por derradeiro, convém registrar que o entendimento aqui esposado – para além de sua maior sintonia com o programa constitucional – não alteraria o panorama fático observado na praxe forense, tendo em vista que, na quase totalidade dos casos de crimes dolosos contra a vida, os acusados são cautelarmente privados de liberdade ainda em fase pré-processual, permanecendo assim até serem julgados por seus pares.