Lei nº 14.382/2022: Possibilidade de inclusão de sobrenomes e a produção de efeitos pessoais e patrimoniais à luz das novas disposições da Lei de Registros Públicos.

A Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, criou o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp) e promoveu diversas modificações na lei de registros públicos (Lei nº 6.015/73) e na de incorporações imobiliárias (Lei nº 4.591/64), visando à modernização e simplificação dos seus procedimentos (art. 1º).

No que concerne ao objeto desta breve exposição, cumpre-nos examinar o que dispõe o §8º do art. 57 da LRP - versado na possibilidade de adoção dos sobrenomes familiares de madrasta ou padrasto -, para diferenciá-lo da hipótese tratada no inciso IV do mesmo artigo, no qual também se autoriza a inclusão de patronímico, porém sob fundamento e com alcance distintos.

Vejamos com calma. No primeiro caso, confere-se ao enteado ou enteada o direito de pleitear, perante autoridade notarial (extrajudicialmente), a averbação do nome de família do padrasto ou madrasta em suas certidões de nascimento e/ou casamento - desde que declinada a respectiva justa causa (“motivo justificável”) e verificado o expresso assentimento dos últimos –, sem embargo da manutenção dos sobrenomes originais.

Já sob um primeiro olhar, mostra-se evidente o alinhamento da norma com a diretriz da afetividade, postulado maior das relações familiares quando lidas sob as lentes do sistema civil-constitucional vigente.

Ora, dado que o nome civil se presta a identificar socialmente não apenas o núcleo familiar originário, mas por igual aquele afetivamente constituído – sendo ainda expressão inequívoca do direito (fundamental) à autorrealização pessoal -, nada mais natural que seja ele funcionalizado à consagração desse arranjo comunitário espontaneamente eleito.

O raciocínio é simples: se o nome original merece proteção jurídica por revelar a origem biológica da pessoa humana – e, bem por isso, inscrever-se no âmbito do seu patrimônio imaterial -, maior razão há para prestigiá-lo enquanto instrumento de representação dos vínculos familiares adquiridos, consolidados pelo afeto, pois somente aí se observa a participação livre, consciente e voluntária do indivíduo na elaboração do seu projeto existencial.

Em uma palavra, deve-se possibilitar a adaptação do nome às escolhas de vida do seu titular, de modo a que este se veja não apenas identificado por dados familiares que não escolheu, mas efetivamente representado segundo as conexões humanas que, por sua deliberação, tenha estabelecido em busca da felicidade (vide, a respeito, o decidido pelo STF no julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132).

Não se está a falar, contudo, de aquisição formal de uma nova relação de parentesco (filiação) – com a produção de todos os seus efeitos jurídicos -, mas no “aditamento” do nome original para que dele conste o sobrenome de família do padrasto ou madrasta com quem tenha estabelecido um vínculo afetivo, denotando nítido escopo de homenagem.

Noutro giro, a hipótese prevista no inciso IV do art. 57 da LRP lastreia-se não somente na tutela do direito ao nome, mas na própria aquisição de novo vínculo filiatório pelo interessado. Trata-se, com efeito, da chamada paternidade/maternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho, a seguir examinada.

O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, diz o art. 1.593 do Código Civil. A parte em destaque constitui importante chave de abertura para o reconhecimento jurídico dos vínculos de parentesco calcados na afetividade, em clara manifestação do fenômeno da “desbiologização do parentesco”, na feliz expressão cunhada pelo professor João Baptista Villela.

Veja-se, a propósito, o teor dos enunciados de nº 108 e 256 das Jornadas de Direito Civil(CJF/STJ), que reúnem periodicamente a nata dos juristas versados na matéria:

CJF, Enunciado nº 108: “No fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva”.

CJF, Enunciado nº 256: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.

No ponto, de forma a esclarecer o conteúdo do que vem a ser a filiação socioafetiva – destacando suas dimensões ética e sociocultural -, vale consultar a cátedra sempre percuciente de ROSENVALD e CHAVES DE FARIAS:

“(...) Para tanto, é preciso que o afeto sobrepuje, seja o fator marcante, decisivo, daquela relação. É o afeto representado, rotineiramente, por dividir conversas e projetos de vida, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações, mostrar caminhos, ensinar e aprender, concomitantemente. Significa, enfim, iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o coração de pais e filhos socioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado dentro do seu coração”(Curso de direito civil: famílias. – 12 ed. rev. e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, pp. 643-644).

Logo, bem se percebe que ambos os cenários acima analisados promovem, à sua própria maneira, a tutela da personalidade humana por meio da valorização da afetividade. Contudo, é não menos evidente a disparidade dos respectivos fundamentos e raios de alcance, conforme nos empenhamos em demonstrar até aqui.

Veja-se: na hipótese do §8º, o legislador autoriza a mudança do nome civil – via acréscimo de sobrenome de família do padrasto/madrasta - sem que isso implique, todavia, na produção de qualquer mudança no estado filiatório (pai e mãe) original do interessado.

Já sob o viés do inciso IV do mesmo artigo 57, a LRP propicia a inclusão do patronímico do pai e/ou mãe socioafetivos como decorrência da própria aquisição de novo vínculo de parentesco - nucleado no afeto e na posse do estado de filho -, com o que se logra a produção de todos os efeitos inerentes a qualquer entidade familiar reconhecida pelo ordenamento jurídico como tal.

Nesse sentido, convém consultar novamente nossa melhor doutrina:

(...) fixada a filiação pelo critério socioafetivo, todos os efeitos decorrem automaticamente, sejam existenciais ou patrimoniais. Por isso, o filho socioafetivo terá direito à herança e aos alimentos (efeitos patrimoniais) e, igualmente, estabelecerá novo vínculo de parentesco e estará sob o poder familiar do pai afetivo (efeitos pessoais), dentre outros.” (op. cit. ,p. 646).

Equivale a dizer, em suma síntese e remate, que o acréscimo de sobrenome – embora igualmente amparado na tutela da família e da personalidade humana, com deferência ao elemento afetivo, – não produz, como a mutação parental -, efeitos sucessórios ou alimentares, tampouco altera a relação paterno-filial originária.