STF declara inconstitucional a flexibilização, via decreto executivo, dos critérios e requisitos para aquisição de armas de fogo

O art. 4º do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003) dispõe sobre os requisitos necessários para quem poderá adquirir arma de fogo de uso permitido:

"Art. 4º Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:

I - comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;

II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;

III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei.

§ 1º O Sinarm expedirá autorização de compra de arma de fogo após atendidos os requisitos anteriormente estabelecidos, em nome do requerente e para a arma indicada, sendo intransferível esta autorização.

§ 2º A aquisição de munição somente poderá ser feita no calibre correspondente à arma registrada e na quantidade estabelecida no regulamento desta Lei.

(...)"

Como se vê acima, a Lei prevê requisitos gerais, remetendo outros aspectos para serem tratados no regulamento.

O primeiro regulamento da Lei nº 10.826/2003 foi o Decreto nº 5.123/2004. Ele vigorou até 2019, quando foi revogado pelo Decreto nº 9.785/2019. Atualmente, vigoram o Decreto nº 9.845/2019, o Decreto nº 9.846/2019 e o Decreto nº 9.847/2019.

Em abril de 2019, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e o Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizaram ADI contra diversos dispositivos inseridos desses sucessivos decretos. Os Partidos aduziram, em síntese, que esses decretos flexibilizaram os critérios e requisitos para a aquisição de armas de fogo e que isso resulta em aumento na violência e da letalidade.

O STF concordou com o pedido formulado na ADI?

SIM. Em linhas gerais, o STF decidiu que:

A flexibilização, via decreto presidencial, dos critérios e requisitos para a aquisição de armas de fogo prejudica a fiscalização do Poder Público, além de violar a competência legislativa em sentido estrito para a normatização das hipóteses legais quanto à sua efetiva necessidade (STF, Plenário. ADI 6119 MC-Ref/DF, ADI 6139 MC-Ref/DF e ADI 6466 MC-Ref/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 20/9/2022 (Info 1069).

O caput do art. 5º da Constituição Federal assegura o direito à vida. Este mesmo dispositivo prevê, como um direito fundamental a segurança:

Art. 5º "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)"

O termo “segurança” também é empregado no caput do art. 6º da CF/88, o que sugere que o legislador constitucional quis enfatizar sua dimensão transversal, abrangendo também uma perspectiva típica de direitos sociais:

Art. 6º "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

Evidencia-se, assim, que a “segurança” não se limita a ser um direito-liberdade, ou um status negativus, mas se enquadra também entre os direitos sociais ou direitos-crédito, os quais exigem uma atuação positiva do Estado.

Assim, a análise da constitucionalidade dos referidos decretos não envolve apenas eventual competência regulamentar atribuída ao Poder Executivo, abrangendo também e, em primeiro lugar, a análise do próprio lugar de um Estado de Direito Democrático na proteção dos direitos, e sua capacidade de regular os conflitos surgidos no interior da sociedade.

Além da diligência devida, aplicada às obrigações dos Estados de regularem os usos de armas de fogo, em atenção à proteção à vida, tem-se consolidado igualmente, na esfera internacional, a necessidade de preservar o princípio da proporcionalidade na regulação da matéria. Isso equivale a dizer que as medidas adotadas pelo Estado sofrem escrutínio quanto à sua necessidade, sua adequação, e sua relativa interferência em princípios contraditórios.

O direito internacional dos direitos humanos impõe ao Estado que as situações de emprego de armas de fogo por seus agentes e, em casos excepcionais, por particulares, obedeça à necessidade, à adequação e, por fim, ao triunfo inequívoco de determinado interesse juridicamente protegido sobre o direito subjetivo à vida.

Assim, do exame do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, já consideradas as incorporações provenientes do direito internacional sobre direitos humanos, é possível concluir que:

a) o direito à vida e à segurança geram o dever positivo do Estado ser o agente primário na construção de uma política pública de segurança e controle da violência armada;

b) não existe direito fundamental de possuir armas de fogo no Brasil;

c) ainda que a Constituição Federal não proíba universalmente a aquisição e o porte de armas de fogo, ela exige que sempre ocorram em caráter excepcional, devidamente justificado por uma particular necessidade;

d) o dever de diligência estatal o obriga a conceber e implementar mecanismos institucionais e regulatórios apropriados para o controle do acesso a armas de fogo, como procedimentos fiscalizatórios de licenciamento, de registro, de monitoramento periódico e de exigência de treinamentos compulsórios; e

e) qualquer política pública que envolva acesso a armas de fogo deve observar os requisitos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.

Nesse contexto, não cabe ao Poder Executivo, no exercício de sua atividade regulamentar, criar presunções de efetiva necessidade para a aquisição de uma arma de fogo distintas das hipóteses já disciplinadas em lei, visto se tratar de requisito cuja demonstração fática é indispensável, mostrando-se impertinente estabelecer a inversão do ônus probatório quanto à veracidade das informações constantes na declaração de seu preenchimento.

Com base nesse entendimento, o Plenário do STF, por maioria:

1) Suspendeu a eficácia dos seguintes dispositivos: a) art. 12, § 1º e § 7º, IV, do Decreto 5.123/2004 (com alteração dada pelo Decreto 9.685/2019); b) art. 9º, § 1º, do Decreto 9.785/2019; c) art. 3º, §1º, do Decreto 9.845/2019.

Esses dispositivos impugnados tinham como objetivo dizer que se o interessado declara que precisa da arma, essa declaração tem presunção de veracidade, somente podendo ser afastada em caso de prova em sentido contrário. O STF, contudo, afirmou que essa previsão é inconstitucional. Nas palavras do Ministro Relator:

(...) não cabe ao Poder Executivo, no exercício de sua atividade regulamentar, criar presunções de efetiva necessidade para a aquisição de uma arma de fogo distintas das hipóteses já disciplinadas em lei, visto se tratar de requisito cuja demonstração fática é indispensável, mostrando-se impertinente estabelecer a inversão do ônus probatório quanto à veracidade das informações constantes na declaração de seu preenchimento.”

2) Conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 4º do Estatuto do Desarmamento, ao inciso I do art. 9º do Decreto 9.785/2019; e ao inciso I do art. 3º do Decreto 9.845/2019 fixando a orientação hermenêutica de que a posse de armas de fogo só pode ser autorizada às pessoas que demonstrem concretamente, por razões profissionais ou pessoais, possuírem efetiva necessidade.

3) Conferiu interpretação conforme a Constituição ao art. 4º, § 2º, da Lei 10.826/2003; ao art. 2º, § 2º, do Decreto 9.845/2019; e ao art. 2º, § 3º, do Decreto 9.847/2019, fixando a tese de que os limites quantitativos de munições adquiríveis se limitam àquilo que, de forma diligente e proporcional, garanta apenas o necessário à segurança dos cidadãos.

4) Conferiu interpretação conforme a Constituição ao art. 10, § 1º, I, da Lei no 10.826/2003, para fixar a tese hermenêutica de que a atividade regulamentar do Poder Executivo não pode criar presunções de efetiva necessidade outras que aquelas já disciplinadas em lei.

5) Conferiu interpretação conforme a Constituição ao art. 27 da Lei no 10.826/2003, a fim de fixar a tese hermenêutica de que a aquisição de armas de fogo de uso restrito só pode ser autorizada no interesse da própria segurança pública ou da defesa nacional, não em razão do interesse pessoal do requerente.

6) Suspendeu a eficácia do art. 3o, II, a, b e c do Decreto 9.846/2019.

7) Suspendeu a eficácia da Portaria Interministerial 1.634/2020-GM-MD. Essa portaria havia aumentado o limite de compra de munição para pessoas físicas que tenham arma de fogo registrada.

Processo: STF, Plenário. ADI 6119 MC-Ref/DF, ADI 6139 MC-Ref/DF e ADI 6466 MC-Ref/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 20/9/2022 (Info 1069).

Fonte: Dizer o Direito.